Uma pessoa importante no cenário
da Cultura, compartilhando um pouco de seu universo particular através de
livros e discos fundamentais em sua formação. Em mais uma edição de 2014, recebemos Daniel Zoto cantor e compositor mineiro, fundador da banda Cirandeiros.
..."não fale com as pessoas, fale antes comigo".
A sina: Severino e Santiago
O artista é um ser que escolhe correr riscos. Isso
porque um artista não faz para si mesmo, embora também não faça pelos outros.
Ele faz pela comunicação. Pela tentativa de que sua voz interior soe uníssona
com outra voz interior. Ele diz, por si mesmo, o que um outro sem saber como,
também quer dizer. Mas, o que ocorre quando o artista precisa dizer algo?
Quando a obra parece lhe pedir uma concessão: “não fale com as pessoas, fale
antes comigo”.
O disco
Severino, sétimo
disco dos Paralamas do Sucesso. Lançado em 1994, Severino destoa de tudo que o trio brasiliense havia feito desde
então. Arranjos inusitados fortemente influenciados pela musicalidade
nordestina, letras com acidez crítica e política: “É muita gente ingrata
reclamando de barriga d`água cheia, são maus cidadãos. É essa gente analfabeta
interessada em denegrir a boa imagem da nossa nação”, nos versos de O Rio Severino. Para além do flerte com
a musicalidade regional, algo que me agrada muito e que tenho como influência,
o que me vincula a este disco é a ideia de um disco feito porque era preciso,
uma obra que não permite outra escolha, que não, ser fiel a uma ideia.
O disco estava desde o início destinado ao fracasso
comercial. Sua originalidade não atenderia a esse propósito. Vendeu apenas 55
mil cópias (pouco para os padrões de uma banda como os Paralamas mesmo nos
fatídicos anos 90, quando vários representantes do Rock nacional sucumbiram).
Vão-se os cifrões, fica a obra. E uma banda como os
Paralamas podiam se dar esse luxo: criar para não vender. A começar pelo
título, passando pela capa (uma gravura de Arthur Bispo do Rosário), às letras
cuja poesia intrincada torna difícil escolher um trecho para ser citado (como
na letra de Músico, pareceria dos
Paralamas com Tom Zé). Para mim, uma boa melodia é sempre potencializada por
uma boa letra. Neste disco melodia e letra são uma coisa só.
Herbert Vianna se esquiva completamente daquilo que o
tornou um dos maiores hitmakers do
Brasil. A sonoridade do disco surpreende. Parece ter sido feito para ser comido
cru. O disco segue sem medo pelos versos de Cagaço,
com seu arranjo minimalista e direto, se equilibra na docemente visceral Varal. Severino é sem dúvida um exemplo
do fazer do músico. É um disco honesto, feito como deveria ter sido feito. E
isso me encanta: a captura da verdade do artista. É saboroso, após ouvir da
primeira à última faixa, perceber na soma dos nuances a corda mestra deste
trabalho. Um artista não o é sem valentia. Deleite para os ouvidos e para o
coração.
O livro
Crônica de uma morte anunciada, de
Gabriel Garcia Márquez. Um livro devorável.
“No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5 e 30 da
manhã...”. Assim Gabriel Garcia Márquez apresenta seu romance, logo no primeiro
parágrafo.
Gabo conta a história de Santiago Nasar, conquistador
inveterado, acusado de desonrar Ângela Vicário, donzela da aldeia, e caçado
implacavelmente pelos irmãos da moça, seus algozes. O assassinato eminente de
Santiago torna cada parágrafo do livro um passo tenso. Todos na aldeia sabem
que os irmãos Vicário estão atrás de Santiago para matá-lo e nada fazem a
respeito. Por quê? É aí que o livro me toca, me inquieta. É uma obra a omissão.
O curioso é que, com o passar do tempo, acabamos nos
sentindo omissos como os habitantes da aldeia, que deixam escapar inúmeras
oportunidades de salvar o protagonista, que parece cada vez mais incapaz de
escapar da sua terrível sina. Somos, como eles, expectadores dessa tragédia. E
é através dos depoimentos desses expectadores que Gabo constrói a narrativa
crua deste livro.
Diferente do realismo fantástico presente em várias
obras de Gabriel Garcia Márquez, como em Cem
anos de Solidão (imperdível!), nesta
obra temos uma narrativa jornalística com os pés bem fincados na realidade. É
daqueles livros que se lê numa noite, e que a gente não esquece mais, querendo
tê-lo em casa como uma ótima companhia guardada na gaveta.
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