terça-feira, 15 de julho de 2014

disblioteca namarra: Daniel Zoto!

Uma pessoa importante no cenário da Cultura, compartilhando um pouco de seu universo particular através de livros e discos fundamentais em sua formação. Em mais uma edição de 2014, recebemos Daniel Zoto cantor e compositor mineiro, fundador da banda Cirandeiros.

..."não fale com as pessoas, fale antes comigo".



A sina: Severino e Santiago

O artista é um ser que escolhe correr riscos. Isso porque um artista não faz para si mesmo, embora também não faça pelos outros. Ele faz pela comunicação. Pela tentativa de que sua voz interior soe uníssona com outra voz interior. Ele diz, por si mesmo, o que um outro sem saber como, também quer dizer. Mas, o que ocorre quando o artista precisa dizer algo? Quando a obra parece lhe pedir uma concessão: “não fale com as pessoas, fale antes comigo”. 

O disco

Severino, sétimo disco dos Paralamas do Sucesso. Lançado em 1994, Severino destoa de tudo que o trio brasiliense havia feito desde então. Arranjos inusitados fortemente influenciados pela musicalidade nordestina, letras com acidez crítica e política: “É muita gente ingrata reclamando de barriga d`água cheia, são maus cidadãos. É essa gente analfabeta interessada em denegrir a boa imagem da nossa nação”, nos versos de O Rio Severino. Para além do flerte com a musicalidade regional, algo que me agrada muito e que tenho como influência, o que me vincula a este disco é a ideia de um disco feito porque era preciso, uma obra que não permite outra escolha, que não, ser fiel a uma ideia.
O disco estava desde o início destinado ao fracasso comercial. Sua originalidade não atenderia a esse propósito. Vendeu apenas 55 mil cópias (pouco para os padrões de uma banda como os Paralamas mesmo nos fatídicos anos 90, quando vários representantes do Rock nacional sucumbiram). 

Vão-se os cifrões, fica a obra. E uma banda como os Paralamas podiam se dar esse luxo: criar para não vender. A começar pelo título, passando pela capa (uma gravura de Arthur Bispo do Rosário), às letras cuja poesia intrincada torna difícil escolher um trecho para ser citado (como na letra de Músico, pareceria dos Paralamas com Tom Zé). Para mim, uma boa melodia é sempre potencializada por uma boa letra. Neste disco melodia e letra são uma coisa só.

Herbert Vianna se esquiva completamente daquilo que o tornou um dos maiores hitmakers do Brasil. A sonoridade do disco surpreende. Parece ter sido feito para ser comido cru. O disco segue sem medo pelos versos de Cagaço, com seu arranjo minimalista e direto, se equilibra na docemente visceral Varal. Severino é sem dúvida um exemplo do fazer do músico. É um disco honesto, feito como deveria ter sido feito. E isso me encanta: a captura da verdade do artista. É saboroso, após ouvir da primeira à última faixa, perceber na soma dos nuances a corda mestra deste trabalho. Um artista não o é sem valentia. Deleite para os ouvidos e para o coração.


O livro

Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez. Um livro devorável.  “No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5 e 30 da manhã...”. Assim Gabriel Garcia Márquez apresenta seu romance, logo no primeiro parágrafo. 

Gabo conta a história de Santiago Nasar, conquistador inveterado, acusado de desonrar Ângela Vicário, donzela da aldeia, e caçado implacavelmente pelos irmãos da moça, seus algozes. O assassinato eminente de Santiago torna cada parágrafo do livro um passo tenso. Todos na aldeia sabem que os irmãos Vicário estão atrás de Santiago para matá-lo e nada fazem a respeito. Por quê? É aí que o livro me toca, me inquieta. É uma obra a omissão. 

O curioso é que, com o passar do tempo, acabamos nos sentindo omissos como os habitantes da aldeia, que deixam escapar inúmeras oportunidades de salvar o protagonista, que parece cada vez mais incapaz de escapar da sua terrível sina. Somos, como eles, expectadores dessa tragédia. E é através dos depoimentos desses expectadores que Gabo constrói a narrativa crua deste livro. 

Diferente do realismo fantástico presente em várias obras de Gabriel Garcia Márquez, como em Cem anos de Solidão (imperdível!), nesta obra temos uma narrativa jornalística com os pés bem fincados na realidade. É daqueles livros que se lê numa noite, e que a gente não esquece mais, querendo tê-lo em casa como uma ótima companhia guardada na gaveta.


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